23 Agosto 2012
Enquanto o Estado nigeriano não for capaz de garantir um governo estável e não quiser reforçar a legalidade, a nossa nação continuará sendo um tanque de material inflamável capaz de explodir com a menor faísca.
A opinião é de Dom Matthew Hassan Kukah, bispo de Sokoto, publicada na revista Popoli, dos jesuítas italianos, 02-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ignorância, preconceito, estereótipos contribuíram mais para aquecer os ânimos do que para esclarecer as questões ligadas aos diálogo inter-religioso na Nigéria. Quase todos os nigerianos instruídos querem manifestar a sua opinião, quase como se fossem especialistas, sobre o diálogo entre as religiões. Paradoxalmente, esse entusiasmo desenfreado sobre questões tão delicadas e complexas faz parte do próprio problema: o fato de que todos queiram manifestar a sua opinião, de que todos digam saber, significa que são poucas as pessoas dispostas a ouvir o que os especialistas têm a dizer a respeito.
Há vários equívocos a respeito do que é o diálogo. Primeiro, está difundida a ideia de que ele deve se concentrar sobre como cristãos e muçulmanos podem viver juntos pacificamente. O pressuposto, portanto, é de que existem problemas entre cristãos e muçulmanos, e que o diálogo poderia resolvê-los. Além disso, comumente, pensa-se que o diálogo deve ser levado adiante pelas autoridades religiosas de ambos os lados e que ele se realize apenas através de encontros, seminários, conferências, fechados em uma sala ou ao redor de uma mesa; que esses eventos sejam promovidos e ocorram sob a supervisão do governo federal e dos governos estaduais; por fim, que os líderes de todas as partes façam o seu melhor para alcançar uma coexistência pacífica, chamando os governos a apoiar essas iniciativas.
Se fosse realmente assim, os nigerianos hoje viveriam em um paraíso. Ao invés disso, como podemos observar quase cotidianamente, as coisas continuam piorando. O que tudo isso diz a nós, cristãos, e aos muçulmanos? O problema está no diagnóstico, no paciente ou no tratamento?
Se o diagnóstico e o tratamento estivessem corretos, e se o paciente tivesse se submetido ao regime de cuidados, alguns sinais de cura seriam visíveis. Infelizmente, não foi assim. E o que está acontecendo na Nigéria demonstra isso.
Eu usei essa metáfora médica porque até agora pouca atenção foi dada ao diagnóstico dos problemas que afligem o país enfrenta, e não se compreendeu como o cerne da questão – e a sua solução – não é o diálogo em si mesmo. Embora as autoridades islâmicas e cristãs continuem se apresentando como promotoras do diálogo, existe o perigo de que a religião seja erroneamente apresentada como a culpada de um crime cometido por outros.
Refiro-me em particular ao Estado, em que o nível de corrupção é muito elevado. É daí que eu gostaria de partir para demonstrar por que esse tipo de diálogo não foi eficaz para acabar com o conflito na Nigéria.
As raízes do conflito
Acima de tudo, o problema é histórico e afunda suas raízes na relação entre os missionários cristãos e a administração colonial britânica. No norte da Nigéria, por exemplo, a Grã-Bretanha adotou a que foi chamada de uma "política de não interferência". em nome da qual deu origem a novos assentamentos para não muçulmanos e comerciantes separados dos centros habitados.
Essa arquitetura de apartheid criou um muro de separação entre os fiéis das duas religiões, que viviam divididos, sem contato nem diálogo. As cidades cresciam sem nenhuma harmonia. Em muitas cidades do Norte, os cristãos eram e são vistos como estrangeiros, e os seus locais de culto estão confinados em áreas específicas. Essa ainda é uma das principais fontes de tensão, de sofrimento e de conflito em muitos Estados do norte.
Nos período pós-colonial, os governos que se seguiram, além disso, cometeram uma série de erros na escolha dos líderes religiosos com os quais se relacionar. No Islã, os emires, que o governo reconhece como autoridades religiosas, são nomeados justamente pelo governo estatal e são, portanto, de fato, uma expressão do Executivo, que paga os seus salários com fundos públicos. O Islã não tem uma liderança semelhante à das Igrejas cristas, e, portanto, é equivocado comparar o papel dos emires ao dos bispos, por exemplo.
Ao longo dos encontros, das conferências e dos colóquios bilaterais, não surgiram líderes religiosos capazes de expressar posições firmes e fortes contra as políticas do governo federal. Isso significa que as autoridades religiosas não têm a coragem de falar claramente quando se trata de enfrentar e resolver os verdadeiros problemas do país.
Deve-se dizer que esses problemas não é responsabilidade somente da classe política atual. A Nigéria, de fato, deve fazer as contas com a nefasta herança deixada pelos militares que, por mais de 30 anos, destruíram os fundamentos democráticos do país. Abolida a Constituição e proibidos os partidos, os nigerianos se refugiaram na religião como única dimensão capaz ainda de responder às suas necessidades espirituais e socioeconômicas. Assim, na ausência de um espaço de engajamento civil, a religião teve um papel cada vez mais importante. Um papel que, ao longo do tempo (também com o retorno à democracia), assumiu cada vez mais conotações políticas. Com inevitáveis degenerações, porque o campo de conflito entre as fés tornou-se um campo de batalha em que a religião é cada vez mais um instrumento de luta do que um lugar natural de encontro.
Bodes expiatórios
Soma-se a isso o fato de que, na ausência de uma verdadeira Constituição, os militares também conseguiram enfraquecer o Poder Judiciário. Um sistema judiciário frágil criou um clima de impunidade. As tensões foram resolvidas pelas ruas, porque os cidadãos não sabem ao certo onde obter justiça. O descontentamento generalizado e os protestos contra os excessos dos militares acabavam e acabam muitas no caldeirão das tensões inter-religiosas.
As tensões civis são definidas como conflitos religiosos, até porque, muitas vezes, igrejas são queimadas e destruídas. Com um Estado fraco e uma justiça frágil, incapaz de punir o crime, os religiosos tornaram-se os bodes expiatórios de um mal-estar geral. Assim, enraizou-se a convicção de que há um conflito generalizado entre cristãos e muçulmanos.
Nas tensões religiosas, por fim, os financiamentos públicos às organizações religiosas têm um papel importante. Os líderes muçulmanos e cristãos estão muitas vezes em desacordo entre si sobre o apoio econômico para as suas iniciativas (peregrinações, obras de caridade etc.). Essa busca por financiamentos se choca cada vez mais frequentemente com a praga da corrupção, que reduziu a capacidade do Estado de oferecer aos próprios cidadãos políticas sérias e eficazes em favor da população.
Enquanto o Estado nigeriano não for capaz de garantir um governo estável e não quiser reforçar a legalidade, a nossa nação continuará sendo um tanque de material inflamável capaz de explodir com a menor faísca.
Quando o governo realmente cumprir o seu dever, cristãos e os muçulmanos poderão dialogar e poderão colocar as suas fés a serviço do desenvolvimento do país, ao invés de serem arrastados para a arena política.
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''Na Nigéria, o diálogo não adianta'': palavra de bispo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU